03/12/2008

riscar o que está errado

I
Quando alguém nos diz que um determinado assunto que nos mói não é assunto é porque:
a) não é da nossa conta
b) já não há pachorra

II
Quando alguém que consideramos amigo nos diz que sente mais do que amizade:
a) ficamos com pena mas afastamo-nos
b) ficamos zangados e afastamo-nos
c) aproveitamos que alguém nos queira assim

III
Quando a solidão se espalha como cinzas ao vento (original imagem, não?):
a) deixamo-nos afundar nela porque estamos cansados
b) levantamos a cabeça e procuramos solução digna
c) ficamos ressabiados e enchemo-nos de tudo o que vier à mão

IV
Quando os problemas vêm todos ao mesmo tempo:
a) escondemos a cabeça na areia e tomamos comprimidos para dormir
b) vamos ao supermercado comprar doces e um saquinho de força para não cairmos por terra
c) sobrecarregamos os amigos com eles
d) zangamo-nos com os mais próximos porque o amor é pouco

V
Quando é natal:
a) desatamos aos tiros
b) fugimos para onde o dinheiro chegar
c) fingimos que entrámos no espírito
d) cerramos os punhos e esperamos que passe

02/12/2008

âncora

Por mais que queira mentalizar-se disso, uma pessoa não é de ferro. Não mesmo. Mesmo que tenha passado a vida a sobreviver a uns embates, a outras tempestades, a alguns atentados, não, uma pessoa não é de ferro.
Quando se chega a um ponto em que uma pessoa não tem onde se apoiar para não cair, quando se é fustigado de todos os lados sem que nada se apresente como sólido para uma pessoa ancorar por uns dias, não há como não se perder na noite escura.
Às vezes podem ser os amigos, às vezes pode ser o trabalho, às vezes podem ser os filhos, às vezes pode ser a família, às vezes pode ser quem se ama. Mas quando os amigos não podem estar presentes ou quando não os queremos carregar com mais peso; quando o trabalho é uma merda que nem sequer é remunerado; quando os filhos vão para fora, ainda que alegres e contentes; quando a família está reunida num sítio onde nem pudémos ir; quando a tal pessoa também foi ver do seu próprio bem-estar, que nos resta?
Às vezes o desalento é tanto que nem temos vontade para segundas escolhas, como daquelas vezes em que, para fugir à solidão, nos agarramos a quem nos quer, mais do que a quem nós queremos.
Depois essas pessoas sem âncora ficam assim tolhidas, presas no frio que vem de dentro e que os cobertores não afugentam, sem terra firme onde lançar ferro, numa solidão e num silêncio que são tanto mais pesados quanto não são desejados.
E a infelicidade é uma coisa fodida de se ultrapassar.

28/11/2008

será que ainda cá estamos no fim do verão?

N'O Bairro do Amor o Jorge Palma diz que há quem pergunte, a sorrir: "Será que ainda cá estamos no fim do verão?"

É a finitude de todas as coisas. Que não nos deixa sossegar. Como se não nos bastasse a finitude maior, a da própria vida, mesmo que desta não façamos grande coisa.

Há finais pelos quais ansiamos, o final da semana, o final do mês, o final das reuniões aborrecidas, o final do dia. Se essa ânsia é o nosso crime, o nosso castigo é a finitude do resto, do verão, do amor, da infância, das vidas dos que amamos. E quando damos por nós já não fazemos planos a longo prazo porque não sabemos se cá estaremos no fim do verão.

27/11/2008

ebenezer scrooge

Ainda sugeri à minha filha "E se não fizéssemos árvore de natal este ano?". Mas ao mesmo tempo que me respondia que nem pensasse nisso, apercebia-me de como estava a ser egoísta.
O natal deprime-me. A música de fundo nos centros comerciais irrita-me. Os pais natal pendurados nas janelas desde outubro exasperam-me. As compras de natal são um stress. Mas isso é agora, já gostei, assim como a minha filha gosta.
Tenho de fazer árvore de natal, não me escapo dessa. Aliás, tenho de fazer duas, a dos meus pais também, também desta não me escapo. Mas a minha desmancho-a assim que posso, como o ano passado, em que a desmanchei no próprio dia de natal, antes de me deitar.
Antes era bom. Iamos todos para casa dos meus avós, comíamos, ríamos, falávamos pelos cotovelos. Depois tornou-se impessoal. Famílias que não são as nossas, filhos que saltitam entre a casa da mãe e a casa do pai, falta de paciência e olhares furtivos para o relógio a ver se ainda falta muito para tudo acabar.
Hoje comprei os meus primeiros três presentes, todos eles para gente de quem gosto muito, valha-me isso, mas dispensava os sininhos e os barretes de natal.
Só o amor à minha filha e aos meus pais me podiam fazer passar por isto com um sorriso, ainda que mal arranjado, nos lábios.

26/11/2008

"o" presente

Depois logo digo o que raio acho do natal e o que sinto nesta altura. Por agora, porque já há quem vá perguntando "O que é que gostavas de receber?" ou "O que é que te dava jeito?", só vou falar disso. Há uma coisa que eu gostava de receber, sim. Embrulhada num papel lindo de morrer, com um laço dos fantásticos, entregue como pedra preciosa num saco absolutamente glamoroso.
Uma vez a minha mãe comprou-me uma, mas não era bem isso. De características quase só o nome. Já comprei duas ou três para a minha filha, mas nenhuma a ponto de encher medidas. Já vi umas quantas na net, à venda, o dinheiro ainda nunca chegou para tal luxo.
O pior é esta coisa de eu ser assim complicadinha. E este presente, esta coisa que tanto gostava de receber de quem me fosse muito, muito caro, tem de ser adivinhado, escolhido a dedo, não pode ser a pedido, de maneira nenhuma, não senhores, há que mostrar empenho, pois então.

puzzle póstumo

Quando eu era miuda, os meus pais diziam que eu era bicho do mato. Não era, na verdade, apenas era já muito selectiva na escolha dos meus amigos e fazia questão de diferenciar os amigos dos conhecidos. Como ainda hoje faço. Conhecidos tenho muitos, amigos, chegam os dedos de uma mão para os contar, e ainda sobram. Sou exigente na amizade, como sou no amor. Estes sentimentos não são coisa que se desperdice em qualquer um. E sou tão inflexível quanto às falhas como sou fiel aos que não me falham.

Todavia, mesmo com esses amigos incondicionais, os que já deram todas as provas, aqueles a quem já provei tudo, reservo-me. Imagino-os, por vezes, sentados juntos à mesa, no dia do meu funeral, a falarem de mim. Juntos conseguirão fazer o puzzle, e sei que só então verão a imagem completa. Culpa minha, que não deixo ninguém conhecer-me. Mesmo assim amam-me. E deixam-me amá-los. E essa será sempre a gaveta mais preciosa do meu cofre.

25/11/2008

escolhas

A Mariana tem 11 anos e é a minha filha
Já falei dela. É uma miúda desenrascada, nada materialista, muito responsável e com ideias formadas. Às vezes acho que demasiado vincadas para a sua idade. Defende e argumenta correctamente aquilo em que acredita ou não.
Ontem ao jantar contava-me o seu dia de aulas. Parece que por alguma razão entrou numa conversa filosófica com a sua professora de português, já que, baseado num livro, o autor falava na divisão das almas, umas para o céu outras para o inferno. E aquilo lá entrou em conflito com as suas ideias e, como uma pequena guerreira lá disse à professora que não acreditava em almas, nem que quando se morre se vai para o céu ou para o inferno, lá disse, que na terra é que tudo se resolvia.
A professora lá foi conversando com ela com manifesto interesse (pelo que a minha filha me ia dando a perceber).
Para rematar a conversa, a Mariana, percebendo que não adiantava prolongar a conversa, finaliza dizendo: como é que eu posso acreditar que há almas boas e más ou que vamos para o céu ou para o inferno quando morremos se eu não acredito em Deus? Acredito que houve um homem chamado Jesus, mas um Deus lá em cima, não.
Portanto, 24 miúdos gritaram "oh! Não acreditas em Deus?"
E a professora apenas acrescentou: "nem todos acreditamos em Deus e como devem saber, na escola, muitos alunos não são crentes. Eu apenas não sabia que tinha nas minhas turmas um desses alunos..."
O facto de se revelar com outra maneira de ver as coisas e com opiniões diferentes, não perturbou nada a Mariana. Eu apenas lhe sorri, ciente de que essa era uma escolha sua, sem que eu lha tivesse algum dia incutido. Pisquei-lhe o olho e perguntei: "não aproveitaste para dizer que aos 3 anos já não acreditavas no Pai Natal, não?"
E ela riu, senhora de si.

1. have you ever really loved a woman?

Sim, eu sei que toda a gente conhece isto. Mas conhece como? Quem é que já se deu ao trabalho de ouvir-ouvir o que o homem diz? Ele há gajos que a sabem toda...


HAVE YOU EVER REALLY LOVED A WOMAN ? (Bryan Adams)

To really love a woman
To understand her
You gotta know her deep inside
Hear every thought
See every dream
And give her wings when she wants to fly

And when you find yourself
Lying helpless in her arms
You know you really love a woman

When you love a woman
You tell her that she's really wanted
When you love a woman
You tell her that she's the one
She needs somebody
To tell her that it's gonna last forever
So tell me have you ever really
Really really ever loved a woman

To really love a woman
Let her hold you
Do you know how she needs to be touched ?
You gotta breath her
Really taste her
To you can feel her in your blood
Then when you can see your unborn children in her eyes
You know you really love a woman

When you love a woman
You tell her that she's really wanted
When you love a woman
You tell her that she's the one
She needs somebody
To tell her that you'll always be together
So tell me have you ever really
Really really ever loved a woman

You got to give her some faith
Hold her tight
A little tenderness
You gotta treat her right
She'll be there for you
Taking good care of you
You really gotta love your woman

And when you find yourself
Lying helpless in her arms
You know you really love a woman

When you love a woman
You tell her that she's really wanted
When you love a woman
You tell her that she's the one
She needs somebody
To tell her that it's gonna last forever
So tell me have you ever really
Really really ever loved a woman
Just tell me have you ever really
Really really ever loved a woman
Just tell me have you ever really
Really really ever loved a woman.

2. have you ever really loved a woman?

sem retorno

Há este filme de 1997 com o Sean Penn, que é daqueles que a gente vê uma vez e do qual se lembra uma data de vezes durante a vida. Porque está muito bem feito, porque é a clara imagem daquilo que é o resultado dos passos que damos, das opções que fazemos, do que dizemos ou do que calamos. O filme chama-se Sem Retorno e é assim que muitas vezes nos encontramos.
Toda a gente sabe que depois de se dizerem certas coisas, por mais que tentemos refrasear, por mais que peçamos desculpas, não há volta a dar. Isto passa-se com coisas que dizemos, mas também com coisas que fazemos e até com coisas que pensamos. É ou não difícil tomarmos mentalmente uma decisão e depois voltar atrás, mesmo que não tenhamos dado conta dela a ninguém?
Vejamos um exemplo: Há estas duas pessoas, um homem e uma mulher que em determinado ponto se apaixonaram. Sendo duas entidades diferentes, necessariamente sentem e agem de formas distintas. Imaginemos que ela, a mulher, que elas são mais dadas a estas coisas, está disposta a entregar-se de alma e coração. Que põe de lado a lista de resoluções que a vida e a idade lhe redigiram, que aposta, que acredita. Imaginemos que ele, o homem, nem por isso. Que se mantém a uma distância prudente, colando no sítio mais visível da porta do frigorífico a lista de decisões que a sua vida e a sua idade também lhe redigiram. Ela, a mulher, ainda esperneia um bocadinho, ainda regateia, ainda pede, mas ele, o homem, mantém-se inflexível. Por defesa, que todos os animais, mesmo as mulheres, apuram o seu sentido de sobrevivência, a mulher começa também a retraír-se, o mesmo é dizer, deixa de lhe apetecer dar tanto, fazer cedências, apostar e começa mesmo a pôr em causa aquilo em que acreditou. Neste processo, inevitavelmente, a paixão esfria por ser constantemente aspergida com razões, as tais que, dizem, o coração desconhece.
Então, sem saber como, ela, a mulher, vendo que recebe tão pouco daquilo que esperava, puxa o véu, ou a concha, ou a janela, ou qualquer outro lirismo barato que a impeça de dar mais do que recebe e assim se protege, se defende, afastando-se.
O que é que isto tem a ver com o filme? O nome, evidentemente.

24/11/2008

truz truz

Enquanto desespero porque o meu pc lá de casa nunca mais fica como deve ser, e vou fazendo bricolage e tricot (ao que o desvario nos leva), abro a minha caixa do correio e dou com um envelope inusitado. Um convite para participar num blogue alheio. Fui ver o que raio era aquilo. Li, reli, virei do avesso, mas não há meio de saber quem raio me convidou. Bem, não exactamente a mim, mas ao meu alter ego. Pelo sim, pelo não, aceitei, e mesmo sem saber regras nem contextos, já comecei a escrever e a publicar, que isto de juntar palavras sempre é melhor do que somar malhas e fiadas ao cachecol.

20/11/2008

saudades

Tenho saudades da minha avó. Do seu cheiro a lareira. Do seu amor. De a ver tentar ordenar a confusão que era a sua casa quando lá estávamos todos. Da sensação de felicidade e segurança que era estar com ela. De a ver levantar-se a custo da cadeira. De me chamar filha. Do trejeito que fazia aos lábios quando ria. De chegar à rua, na aldeia, e de a ver encostada à ombreira da porta à nossa espera. Da sua insistência para pormos mais um cobertor na cama. De a ouvir dizer que tivesse mais calma com o meu pai. De a ver envergonhada quando o meu avô lhe fazia um carinho. Tenho saudades da casa quando ela estava. De estarmos todos à sua volta. De sermos um todo, com tanta segurança que nem pensávamos nela.
Tenho saudades de a ver curvada a cuidar das malvas e das roseiras. De a ver dobrar as notas muito bem dobradinhas para as arrumar no porta-moedas. De a ver pôr na mesa tudo o que tinha para comermos, chegados da viagem. De a ter em minha casa, radiante e radiosa. De lhe ajeitar o lenço que usava na cabeça e de lhe fazer uma festa na cara.
Tenho saudades de quem eu era com ela. Da âncora que foi em sua casa e na nossa família. Do amor que votava a todos nós.
(Aqui está a minha avó, rodeada pelas netas e bisnetas, falta o resto, imenso.)
Tenho saudades.

a crise

A minha filha já assinalou no catálogo do continente os presentes que gostaria de receber. Com simbologias diferentes, conforme o grau de desejo de ter determinado brinquedo. A cada um perguntava "Achas que posso marcar este, mãe? Não é muito caro?"
Entretanto, ao meu pai ela dizia: "Este ano está difícil para os presentes, não me importo se não receber o que mais gosto. Eu sei que as pessoas estão com pouco dinheiro, a mãe já me disse que paga cada vez mais pela casa e também há muita gente que está a ficar sem trabalho. Sei que não podemos ficar sem casa nem sem comida, por isso se a mãe não me puder comprar o que eu gostava e vocês também não, não faz mal." E depois acrescentou, a pita de 8 anos: "Ainda se este primeiro ministro se fosse embora..."
Para mim, o presente de natal já está dado, a compreensão e atenção da minha filha. Para mim, também não é preciso mais nada.

19/11/2008

assunto do dia

A Drª Manuela Ferreira Leite não é parva nem anda nisto há meia dúzia de dias. Sabe o que diz e como o diz. Se se atreve a utilizar a ironia, deve certificar-se de que a usa de forma a que chegue clara a todos os receptores. Ou então arrisca-se a que a levem a sério quando diz que devíamos arrumar a democracia durante seis meses para pôr em prática o "quero, posso e mando". Pode até ter usado de ironia. Mas a verdade sujacente à coisa é a de que, se pudesse, era isso mesmo o que faria.

18/11/2008

curiosidade

Ela anda doida para saber o que eu ando a fazer (a minha amiga Nat). Mas eu não lhe digo.
Ela reclamou um post, mesmo pequenino.
Aqui está ele.
Vai valer a pena a minha ausência, sua curiosa!

aquilo sem nome

Estou pertinho de chegar à triste conclusão de que gosto mais de ter um gato do que gosto do gato em si mesmo.
Quer dizer, acho piada a vê-lo brincar, gosto quando se vem sentar no meu colo, que se enrole nas minhas pernas, que chame pela minha filha quando ela não está.
Mas não sei... não sinto aquela coisa. Aquilo. A que a gente nem dá nome porque está para lá disso. Aquilo que também se pode sentir pelos animais, eu sei, porque já senti. Mas pelo Hugo não. Ou ainda não.

do frio

Há, com certeza, quem me diga que me podia ter dado para coisa pior. A minha mãe, por seu lado, diria que finalmente estou a ficar uma mulherzinha.
A verdade é que absolutamente desesperada por não dar a volta às exigências do sistema operativo do meu pc, frustrada por esgotar tentativas de instalação do maldito periférico, deu-me para isto.
Daqui há-de sair um cachecol daqueles que dá voltas e voltas ao pescoço, uma coisa a lembrar aquelas colchas que a minha avó fazia para as netas, enormes, umas atrás de outras, colchas e cachecóis servindo, afinal, mais para enganar o tempo do que o frio, mais para enganar angústias do que o inverno.

17/11/2008

beauvoir

"Atroz contradição a da cólera; nasce do amor e mata o amor."

verde

"Eu teria até ciúmes do vento ao acariciar a tua pele." E uma mulher, mesmo que não queira estes ciúmes para nada, guarda a frase para reler quando outra indiferença a toca. Vá-se lá entender as mulheres. Não querem ser controladas, querem ser respeitadas e querem também que sintam uma picada por ela.

Eu própria, que sou gaja, mal as entendo, quanto mais os desgraçados dos homens.

16/11/2008

são dois braços

"São dois braços, são dois braços, servem pra dar um abraço; assim como quatro braços servem pra dar dois abraços". A canção do Sérgio bem o diz, mas às vezes a gente esquece-se que os braços servem para isso. E lembra-se de outros préstimos. Cruzamo-los em atitude de defesa ou de distância. Deixamo-los cair como se não tivéssemos força. Utilizamo-los para empurrar para longe o que não queremos ver. Às vezes também os damos a torcer, mesmo que achemos que não devíamos, só para a tempestade amainar. Outras vezes usamo-los apenas para escondermos a cara. Outras ainda para dar força aos murros na almofada.
Às vezes esquecemo-nos de os usar para aconchegar um gato ou um filho. Às vezes esquecemo-nos dos abraços que já démos, dos que já recebemos e de como nos sentimos em casa.
Um destes dias recusei um abraço a um amigo. Ele precisava e eu recusei-lho, apenas porque uma vez, há algum tempo, um abraço que lhe dei foi mal entendido. Mas um abraço não se recusa. É para isso que servem os braços.

14/11/2008

rosa chá

Há tempos ofereceram-me uma caneca. Toda giraça. Com uma quadra do Fernando Pessoa impressa. A caneca onde bebo o meu chá de velha solitária, daquelas que têm gatos por companhia, daquelas rezingonas, que ninguém atura. A não ser os gatos.
Eu tenho esta mania chata de ver significados nas coisas todas. Sei lá, tenho a mania que não se dá ponto sem nó. Hoje, a olhar de esguelha para a caneca, percebi, poderia dizer que se fez luz, mas na verdade ficou foi tudo ainda mais escuro.
O Fernando Pessoa escreveu e a mim ofereceram-me. A mim.

O moinho de café
mói grãos e faz deles pó
o pó que a minha alma é
moeu quem me deixa só

13/11/2008

solidão

Já repararam? Se virmos alguém, na rua, sozinho, a rir, olhamos de lado como se essa pessoa estivesse louca. E se virmos alguém a chorar, na rua, sozinho, desviamos o olhar em vez de tentar um consolo. Fugimos com os olhos porque temos medo. De saber porque chora. De nos envolvermos. De nos lembrarmos do que somos. Ninguém estende a mão a ninguém. Ao nosso lado estão a chorar, mesmo com os óculos escuros que o tentam disfarçar, e ninguém diz a quem chora "Vai passar."
(Um dia, numa esplanada perto da praia, num dia de outono com sol, uma velha sentou-se na mesa a meu lado, despiu-se da cintura para cima, as mamas velhas, peles descaídas -talvez uma dessas velhas que envelhecem sozinhas com os seus gatos- e ficou ali, descontraidamente a apanhar sol. Os homens que passavam, riam. Algumas mulheres olhavam-na de fugida, incomodadas. Ela, a velha, não se mexia, de frente para o sol, alheia aos outros. Assim ficou até que o empregado de mesa lhe disse que não podia estar ali, assim.)
Os outros são sempre um espelho de nós.

luto

Tenho andado a pensar muito no que me disse a minha psicóloga. Acerca dos lutos. De termos que os fazer.
E dei por mim a pensar nas relações emocionais, que de melhor termo não me lembro. De todas saí por escolha minha. De nenhuma saí ainda a gostar do homem com quem estava. Quando o gosto começava a esmorecer, eu ia ficando, sempre na esperança de que voltasse, de que a desilusão desse lugar a novo alento. Quando isso não acontecia, a relação morria. E eu fazia o luto, sim, mas lá, em vida, ainda que moribunda, da relação. Depois, fazia como o Hugo, o meu gato, e enterrava os mortos debaixo de uma camada de areia.
O que eu não sabia era que em dias de vendaval, como o de hoje, o de ontem e provavelmente dos dias que se avizinham, a areia seria desviada e os esqueletos sairiam do armário, ou melhor, da sua precária sepultura. O que eu não sabia era que eles se misturariam com os vivos, que viriam esgrimir argumentos, fazer comparações do tipo "eu magoei mais do que tu!", "não, eu é que magoei mais". O que eu não sabia era que estes esqueletos seriam a amostra dos meus dias vindouros. O que eu não sabia era que era a mim que devia cobrir de areia, deixar de respirar, deixar de sentir, deixar de pensar.

ar fresco

Às vezes, quando já estamos fartas de escrever no caderninho das coisas boas apenas a frase "não fui atropelada", num dia em que pensamos que estamos na rua com o mesmo jeito altivo, a mesma cara simpática, a mesma afabilidade no trato com os outros, alguém vê mais além. Como este meu amigo. Que me disse que posso sempre contar com ele. Que me lembrou que a qualquer hora do dia ou da noite o posso chamar. Que me deu dois beijos carinhosos na testa, me fez uma festinha na cara, me apoiou a nuca e me disse que ficava triste por me ver de olhos molhados. No dia em que pensamos que ninguém dá por nada, que ninguém pode notar que o nosso mundo se desmorona aos poucos, mas violentamente. Nesse dia pode haver uma lufada de ar fresco. E nesse dia, não podemos, sob pretexto nenhum, nunca mais, de forma nenhuma, lamentar que esse ar fresco não venha de outro lado. É aceitar as coisas como são, o que devemos fazer. Deixar que as coisas se complementem, quando o que queríamos completo não o é. É sorrir, mesmo que os músculos não queiram obedecer, levantar ainda mais o queixo e bater ainda com mais força com os tacões no chão, ao caminhar. E caminhar sempre, mesmo que doa, mesmo que tudo sangre, não importa, isso não diz respeito a ninguém.
A não ser aos amigos que nos dão um beijo na testa porque se entristecem com a nossa tristeza.

a corda esticada

Ela ia falando comigo. Que estava frustrada. E infeliz. E zangada. E ia expondo-me as suas razões. As suas expectativas goradas. Os sonhos arrasados. O caminho para onde se sentia empurrada sem que o quisesse seguir. Ia-me dando exemplos enquanto engolia as lágrimas que o orgulho se esforçava por esconder. Ia alternando entre a voz baixa e grave e a tremida, contida.
Horas depois, eu estava com medo deste cocktail explosivo que é uma mulher frustrada, infeliz e zangada. Nunca é bom prenúncio e temo por ela.

12/11/2008

byron

"Na vida do homem, o amor é uma coisa à parte, na da mulher, é toda a vida."

diferentes perspectivas

A propósito de uma qualquer discussão entre ausência e omnipresença, e tendo presente que o espaço entre estes dois opostos é vastíssimo, tendendo a desequilibrar sempre que se aproxima de um dos extremos, ocorreu-me um episódio que se conta na aldeia dos meus pais.
Na escola, a professora encontrou piolhos na cabeça de um dos alunos mais velhos. Disse-lhe: "Tu estás cheio de piolhos, tens que dizer à tua mãe para tratar disso." A mãe, depois de ouvir o recado, foi à escola e disse à professora: "Já tratei do assunto, senhora professora. Não foi difícil, piolhos era só um por acaso." Ao que a professora respondeu: "Nesse caso, expliquei-me mal, o seu filho está é cheio de por-acasos."
Moral da história: Cada um vê as excepções à regra dentro da medida do que lhe torna a realidade menos frustrante.

Luna

Dizia o poeta que um sonho morre sempre às mãos de outro sonho. Eu acredito. Dizia a minha psicóloga que não podemos seguir em frente sem fazer o luto do que deixámos para trás. Também já acredito.
Para muitos isto poderá não ter nada a ver com o que se segue, mas para mim, dadas as reviravoltas cognitivas de que sou capaz, tem.
Enquanto morava com os meus pais, tivémos um cão, o Paquito. Viveu 16 anos e apaixonou-nos a todos, lá em casa. Era um cão fantástico, meigo e esperto, brincalhão até aos últimos dias, mesmo quando as cataratas já não o deixavam ver o quintal. Não lhe acompanhei o declínio tanto como os meus pais, porque entretanto já tinha saído de casa, mas a sua morte nem por isso me deixou menos triste.
Agora o meu pai, de regresso do alentejo, trouxe mais um, aliás, é uma menina, uma cadela, preta como asas de corvo, bebé, monte de carne indefeso. Chamámos-lhe Luna, depois de conferência familiar, que a cadelita há-de ser, não só deles, mas da minha filha e minha também.
Provavelmente a minha mãe não tinha ainda acabado o luto pelo Paquito, afinal, há apenas dois anos que morreu. Ou então, tem medo de outra desilusão, de outra perda, como a podemos culpar?, e só depois de muita insistência aceitou pegar na Luna e fazer-lhe festas.
Não há amor como o primeiro, dizem, mas há de certeza amor depois do primeiro, mesmo aplicado a um animal de que cuidamos.
Não sei se vejo na Luna uma espécie de prolongamento do Paquito, que também trouxémos do alentejo ainda bebé, a verdade é que a cadelita me emocionou mais do que o Hugo, o meu gato. Chegada a casa, algum sentimento de culpa por achar que não gosto assim tanto dele, mimei-o, brincámos, dei-lhe os petiscos de que mais gosta. O Paquito é o Paquito, há-de ser sempre, nenhum outro animal ocupará o seu lugar, mas isso não pode impedir que os nossos afectos de estendam a outros.
Afinal, o nosso amor pelos animais não será tão diferente assim do nosso amor por algumas pessoas.

computadores

A minha companheira de blog e de vida anda desesperada.
Avariou-se algo na sua existência que a tem feito andar numa roda viva. Não, não foi nenhum neurónio, porque esses, enfim... já andam avariados há algum tempo. Os seus computadores deram o peido mestre. E é vê-la escadas acima, escadas abaixo como uma barata tonta. Desventrou o computador do trabalho, acreditando num milagre, mexendo nos fios, reiniciando-o vezes sem conta. Isso teve apenas um benefício: o arquivo dos papéis, que vai adiando de dia para dia, encontra-se organizado ao pintelho. E desespera com a hipótese de ter perdido tudo o que tem guardado. Pois é, refazer coisas de 2005 é estopada. E perder os records dos jogos que tem conseguido?
Espero que hoje a coisa esteja resolvida. Caso contrário lá vai ela galopar pelas escadas... feita égua maluca. Hehe...